O abandono do lar era um conceito jurídico utilizado como fundamentação dentro da discussão de culpa pelo fim do relacionamento afetivo/amoroso em processos judiciais que versavam sobre separação, divórcio e dissolução de união estável.
Contudo, desde o ano 2010, quando do reconhecimento do divórcio como direito potestativo (basta que apenas um dos cônjuges manifeste seu desejo para que o mesmo seja decretado, sem a necessidade de citação/intimação do outro ou até mesmo apresentação de “defesa”) mediante a Emenda Constitucional nº 66, findou-se a discussão de culpa pelo fim de relacionamento, e as possíveis sanções que eram aplicadas quando constatadas a culpabilidade de um dos cônjuges/companheiros, dentre elas, o abandono do lar.
Infelizmente ainda é muito comum nos depararmos com a situação de mulheres que não se separam/divorciam ou são ameaçadas por seus maridos/companheiros em virtude da alegação de que haverá a caracterização de abandono de lar, bem como de que elas perderão seus direitos, principalmente sobre o imóvel (e outros bens) e sobre os filhos.
É imprescindível que possamos desmistificar o mito que se criou em torno do abandono de lar.
Uma porção de perguntas surge nesse momento: quais meus direitos? Posso ficar com a casa? Como fica a divisão dos bens?
Bom, primeiramente temos que entender o que é o tal do “abandono de lar”, certo?
Abandono de lar significa deixar o lar conjugal, sumir, desaparecer sem deixar notícias. Deixar a família sem assistência.
A Lei nº 12.424/11 trouxe novos contornos a essa expressão ao estabelecer um tipo de usucapião especial para abranger as relações familiares e nova modalidade de perda da propriedade por abandono do lar.
SUMÁRIO
ToggleE quais as consequências desse abandono?
No ano de 2011, foi incluído no Código Civil o art. 1.240-A, que permite que o cônjuge que foi abandonado possa adquirir o domínio integral do imóvel que era do casal (usucapião familiar), desde que sejam atendidos os seguintes requisitos:
- Deve existir posse direta e exclusiva do imóvel pelo abandonado por dois anos sem interrupção;
- Não pode existir qualquer forma de oposição por aquele que abandonou;
- O imóvel deve ser urbano e ter até 250m²;
- A propriedade, que era dividida com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, deve ser usada para a moradia do abandonado ou de sua família;
- O cônjuge ou companheiro abandonado não pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Importante lembrar que a aquisição pelo abandonado será apenas do imóvel. Isso significa que a partilha dos demais bens seguirá o regime escolhido no casamento. Para entender melhor como funcionam os regimes de bens para a partilha.
O que diz a lei
Segundo o, Art. 9o da Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011 aquele que permanecer residindo no imóvel conjugal por dois anos ininterruptos, sem oposição e com exclusividade em imóvel urbano de até 250 m2, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, poderá se valer da usucapião familiar.
Quanto tempo é considerado abandono de lar?
Muitos perguntam sobre o tempo que é necessário para que se considere abandono de lar, e a resposta para essa pergunta, no caso específico da usucapião acima tratada, é de dois anos. Isso está expresso na própria lei (artigo 1240-A do Código Civil).
Outra observação a ser feita é que essas consequências não se aplicam apenas ao homem. A usucapião por abandono de lar pela esposa (repetimos: voluntário e com rompimento dos laços com a família) é algo também possível, e gera as mesmas consequências. Como dito, esses casos são menos frequentes do que o abandono voluntário pelo homem, mas o esposo que permanece no imóvel da família também poderá ter direito à usucapião, se tornando proprietário exclusivo daquele bem.
O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento jurídico da união e do casamento homoafetivo. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, enunciado doutrinário aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: “a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (Enunciado n. 500).
Abandono de lar em caso de violência doméstica
Deve ficar claro de uma vez por todas que, se a esposa abandonar o lar por estar sofrendo violência doméstica, ela não perde direitos. Nestes casos há uma situação em que a saída do lar conjugal é mais do que necessária para preservar sua integridade física. Não tem qualquer cabimento achar que a mulher, além de ser aterrorizada, deverá ser punida por tentar salvar sua vida ou de seus filhos. Se o esposo é uma pessoa violenta, a prioridade é manter-se segura, e para isso há as medidas protetivas da lei Maria da Penha.
Quero sair de casa. Como evitar a configuração de abandono de lar?
O abandono do lar pode ser facilmente descaracterizado com algum registro, formal ou informal, de intenção ou desejo pelo fim da conjugalidade. Um simples registro ou formalização da separação de fato e de corpos pode descaracterizar o abandono do lar e, consequentemente, o usucapião familiar.
Com a finalidade de evitar a concretização de usucapião por abandono de lar, aquele que abandonou o lar pode notificar o ex-cônjuge/ex-companheiro (a) anualmente demonstrando interesse sobre o bem, para que não seja iniciado a contagem do prazo a favor do ex-cônjuge/ex-companheiro (a) que permaneceu no lar.
Além disso, os ex-cônjuges/ex-companheiros podem solicitar a separação de corpos, não deixarem passar dois anos sem regularizar o imóvel ou até mesmo não abandonando o lar pelo período de dois anos.
O usucapião familiar é aplicado a todos os regimes de bens?
Este instituto não é aplicado para todos os regimes de bens. Sendo, portanto, aplicável no regime universal de bens, no regime de comunhão parcial de bens dos imóveis adquiridos após o casamento e no regime de participação final dos aquestos dos bens que se comuniquem, não sendo aplicado ao regime de separação total de bens.
Qual a vara competente para apreciar a modalidade de usucapião familiar
Há uma divergência na doutrina e na jurisprudência sobre de quem seria a competência para apreciar a modalidade de usucapião familiar: Vara cível ou a vara de família? O posicionamento majoritário é que a competência é da vara cível, por se tratar de matéria de direito real, tratando, portanto, o abandono do lar como um dos requisitos para a aquisição de usucapião familiar.
Conclusão
A preocupação mais comum nos casos de abandono do lar recai justamente sobre os direitos aos bens do casal em caso de divórcio; porém, o abandono do lar não interfere na partilha dos bens. Tudo deverá ser feito seguindo o regime de bens do casamento: separação total, comunhão parcial ou comunhão universal.
Agora, no prazo máximo de dois anos, a pessoa que deixou o lar precisa dar entrada no divórcio. Caso não o faça, corre o risco de ser citado numa ação de usucapião familiar, na qual a outra parte pode pedir a total propriedade do imóvel do casal diante do abandono.